quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


                                   


                           AS CONVENÇÕES HUMANAS

Marcos, 2:23-28
Lucas, 6:1-5
A patroa tentava acertar o descanso semanal da serviçal.
– Quero no sábado.
– Terá folga no domingo, conforme o costume.
– Não vai dar.
– Por quê?
– Sou sabatista.
– Não entendi…
– Está na Bíblia. O dia consagrado ao Senhor é o sábado.

A serviçal mostrou-se irredutível. Sem acordo, desistiu do emprego.
Inúmeras donas de casa vêem-se às voltas com esse problema.

Algumas das múltiplas facções em que se dividiu a reforma protestante promovida por Lutero encasquetaram que devem observar a orientação bíblica, guardando o descanso no sábado.

Geram sérios embaraços para seus profitentes,  porquanto desde a Idade Média a cultura ocidental consagrou o domingo, celebrando a ressurreição de Jesus.

O sabatista pretende reviver uma orientação arcaica, superada, que não condiz com a atualidade. Sua intransigência é um atestado eloqüente dos problemas que o fanatismo ocasiona ao observar literalmente textos religiosos que dizem respeito a outros tempos, outros costumes, sem sabor de perenidade.
***
Foi registrado por Moisés, na Tábua da Lei, terceiro mandamento:
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar.

Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra.

Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque em seis dias fez o Senhor os céus e a Terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou.

Segundo a alegoria bíblica Deus, como diligente construtor, trabalhou duro e edificou o Universo, incluindo a Terra e os seres vivos, em seis dias.

A Ciência nos diz que gastou um “pouquinho” mais: perto de cinco trilhões e quinhentos bilhões…

E não há como contestar fatos científicos e cálculos astronômicos, envolvendo a formação do Universo há aproximadamente quinze bilhões de anos; a Terra há quatro bilhões e meio; o aparecimento do homem há cerca de um milhão de anos.

Mas, voltemos à Bíblia.

Concluído o árduo labor, o Senhor, como se fora um ser humano, sentiu necessidade de repouso.

Descansou no sétimo dia.

Não se sabe o que fez a partir do oitavo.
Dizem as más línguas que continua descansando, porquanto não se entendem os homens e a confusão reina na Terra.

***
Quando Moisés impôs a orientação para o sábado, praticamente instituiu a primeira legislação trabalhista, atendendo a justa necessidade de descanso para o servo, o animal, o escravo…
Ocorre que, como fazia habitualmente, proclamou tratar-se de ordem divina. Jeová o determinava.
As penalidades eram absurdamente severas.
Como está em Números, um dos livros sagrados do judaísmo, no capítulo 15, um homem foi surpreendido a amontoar lenha no sábado.
Imediatamente foi levado à presença de Moisés.

Registram os versículos 35 e 36:
Então disse o Senhor a Moisés:

– Tal homem será morto. Toda a congregação o apedrejará fora do acampamento.

Portanto, toda a congregação o levou para fora do acampamento, e o apedrejaram até que morreu, como o Senhor ordenara a Moisés.
Pobre Jeová! Tinha costas largas…

***
Ao tempo de Jesus, que viveu perto de mil, duzentos e cinqüenta anos depois, vemos essa orientação levada a extremos.

No dia consagrado ao Senhor era proibido desatar um nó, acender o fogo, levar um objeto para fora de casa, fazer mudança, viajar…

Sair de casa, somente para ir à sinagoga.

A vida ficava complicada.
Era preciso cuidado para não se fazer nada que pudesse ser caracterizado como uma violação.
Alguns judeus radicais evitavam até a satisfação de necessidades fisiológicas para não macular o sábado com seus excrementos. Herético desarranjo intestinal seria um desastre…
Para Jesus estas disciplinas não passavam de tolices sustentadas pelo fanatismo.
Em pleno sábado visitava, curava, ajudava, orientava, viajava…
***
Não tardaram os problemas com o judaísmo dominante.
Logo após a controvérsia por causa do jejum, Jesus passava pelas searas com os discípulos. Estes, famintos, colhiam espigas que debulhavam e comiam. Provavelmente era trigo.
Os fariseus se escandalizaram, não porque estivessem invadindo propriedade alheia. Segundo a orientação mosaica, os viajantes podiam fazê-lo, desde que apenas para saciar a fome, sem levar nada (Deuteronômio, capítulo 23).

Sua indignação dizia respeito ao dia.

Era sábado!

Aqueles galileus atrevidos estavam exercitando uma atividade proibida no dia consagrado ao Senhor!

Pacientemente, reafirmando seu invejável conhecimento das escrituras, Jesus explicou:

Nunca lestes o que fez David quando teve fome, ele e os que com ele estavam? 

Como entrou na casa de Deus, tomou e comeu os pães da proposição, que somente aos sacerdotes era lícito comer, e os deu também aos que estavam com ele?

Na liturgia judaica, pães da proposição eram consagrados ao Senhor, de uso reservado aos sacerdotes. Numa circunstância especial, David e seus companheiros alimentaram-se deles.

Se David, apenas um candidato a rei, empenhado em estabelecer um novo reino em Israel, colocara-se acima daquela prescrição, por que Jesus, que vinha instituir algo muito mais importante, um reino divino, não poderia sobrepor-se ao sábado?

E acentuou, escandalizando seus opositores:
– O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.
Argumento incontestável.

O sábado viera para melhorar a vida, não para complicá-la.

Excelente existir uma legislação trabalhista que fixa o descanso semanal ou um princípio religioso que consagra determinado dia para o culto.

Mas, se nesse dia estamos absolutamente proibidos de tomar iniciativas; se nos é vedado decidir se queremos ou não arrumar a cama, limpar a casa, preparar uma refeição, cortar as unhas, efetuar um passeio ou ir ao cinema, então é melhor dispensar esse suposto benefício que nos oprime, cerceando nossa liberdade.

Espantoso que após dois mil anos de Cristianismo tenhamos seitas cristãs pretendendo observar princípios mosaicos revogados por Jesus, complicando a vida de seus profitentes.

Praza aos Céus não decidam levar às últimas conseqüências semelhante orientação. Seremos todos apedrejados!

***
Como todos os fanáticos, os fariseus mostravam-se impermeáveis às ponderações de Jesus nas controvérsias que levantavam. O dia consagrado ao Senhor seria motivo de novas investidas, em outras oportunidades.

No sábado seguinte Jesus foi à sinagoga.

Ali estava um homem com a mão direita ressequida.

A expressão, consagrada em quase todas as traduções da Bíblia, não exprime com fidelidade sua condição. Só se justificaria se houvesse a obstrução das artérias e cessasse a circulação sangüínea. Seria impossível conviver com esse problema. A mão logo gangrenaria, colocando sua vida em risco.

Provavelmente sofria uma atrofia muscular.

Segundo textos apócrifos, trava-se de um pedreiro que teria implorado a Jesus o curasse, a fim de que pudesse retomar o exercício de sua profissão.

Os fariseus, vendo que Jesus dispunha-se a ajudá-lo, intentaram, como se tornara hábito, compromete-lo.
– É lícito curar no sábado?
Ao que respondeu Jesus:
– Qual dentre vós será o homem que tendo uma ovelha e, num sábado esta cair numa cova, deixará de esforçar-se por tirá-la dali? Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha. Logo, é lícito fazer o Bem no sábado.
O raciocínio de Jesus, como sempre, foi irretocável.
Não havia o que contestar.
Calaram-se os fariseus e ele disse ao doente:
– Estende a mão.
O homem obedeceu e no mesmo instante sua mão ficou sã.
Jesus partiu, sempre acompanhado de seus discípulos e pela multidão.
Comenta o evangelista Marcos:
Tendo saído, os fariseus tomaram logo conselho com os herodianos contra ele, procurando ver como o matariam.
Vê-se que já nesses primeiros contatos com Jesus, os fariseus reagiam aos seus ensinamentos, não se conformando com aquele pretensioso galileu que ousava contestar as tradições do judaísmo. E articulavam com os membros de um partido político que apoiava Herodes Ântipas o movimento que culminaria com sua morte.
***
A controvérsia do sábado lembra as convenções humanas.
São úteis mas, se levadas a extremos de intransigência, deixam de servir o homem e passam a escravizá-lo.
Todo estabelecimento comercial tem horário, obedecendo a uma regulamentação do Estado. Os bancos, por exemplo, encerram suas atividades para o público geralmente às dezesseis horas. Em expediente interno completam o processamento dos papéis.

Um cliente chega com dois minutos de atraso para pagar determinado imposto. No dia seguinte haverá multa.
Entretanto, não o deixam entrar, sob alegação de que é preciso obedecer ao horário.

Seria mais fácil e simpático abrir uma exceção, sem prender-se à rigidez do regulamento. É o que se chama de flexibilidade ou, popularmente, jogo de cintura.

Um rapaz budista concordou em casar-se em igreja católica, atendendo às convicções religiosas da noiva.

O sacerdote exigiu que os noivos participassem de um curso preparatório e se submetessem a determinados sacramentos.

Trata-se de uma convenção aceitável e útil para os profitentes católicos. Mas para o adepto de outra religião deveria estar contida nos limites da opção, em saudável exercício de fraternidade. Se levada ao pé da letra, com intransigência nada fraterna, gera um impasse.

O noivo procurou inúmeros sacerdotes, até encontrar um mais esclarecido que o dispensou daquelas preliminares.
***
Durante décadas, em nosso século, a civilização ocidental adotou para os homens a convenção dos cabelos curtos, barba raspada.
Quando os jovens resolveram deixar crescer os cabelos e a barba, levantaram-se vozes intransigentes, chamando-os de marginais e desordeiros.

Os pais ficavam possessos quando os filhos adotavam a nova moda.

Por que?

Não há nenhuma lei que obrigue as pessoas a aparar os cabelos e raspar a barba.

Alguém prefere o contrário? – problema dele.

Ficamos incomodados? – problema nosso.

Algo curioso aconteceu:

Para muitos jovens o cabelo comprido e a barba também se transformaram em convenções. E se alguns preferiam o contrário, eram taxados de tolos “filhinhos do papai”.

Em defesa da liberdade de não se submeterem à convenção dos cabelos aparados sem barba, tornavam-se escravos dos cabelos compridos com barba.
As convenções são úteis, mas devemos encará-las com espírito aberto, sem condicionamentos.

Caso contrário, em determinadas circunstâncias, perderemos a iniciativa e seremos dominados por elas, esquecendo que foram feitas para servir o Homem e não para oprimi-lo.
Livro "Levanta-te!"