quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Capacidade de amar


Naquela noite, na sala de uma emergência médica, o jovem estudante aprendia a arte da medicina. Depois de atender alguns pacientes com quadros psiquiátricos descompensados, chegou a vez de uma senhora que muito lhe chamou atenção.

Vestida com roupas extravagantes e transparecendo uma sexualidade exacerbada, ela adentrou o consultório cantando de modo bem estridente e caricatural, ao mesmo tempo em que era acompanhada por uma irmã e a filha mais velha.

Porém, a certa altura do atendimento, estafada, a irmã falou enfaticamente com a sobrinha, referindo-se à transtornada mulher – 

eu não aguento mais, não! 

Agora que você completou dezoito anos, vai passar a cuidar também dela.

Foram tomadas todas as condutas diagnósticas e terapêuticas adequadas ao caso e, depois disso, o futuro esculápio, procurando entender melhor o enquadramento familiar, indagou à jovem moça - há quanto tempo tua mãe tem esta doença?.

Fez-se um silêncio breve, e, parecendo ter passado por uma retrospectiva de vida, a menina respondeu – faz tanto tempo que eu nem me lembro, “desde que eu me entendo por gente ela é assim”.

Não houve, contudo, tempo para ela terminar a frase. Automaticamente, as lágrimas rolaram em seu rosto de modo convulsivo. Um silêncio dominou o ambiente e, até mesmo a paciente, diminuindo o estado de agitação em que se encontrava, deixou-se emocionar...

A fala de Jesus, indicando que o maior dos mandamentos seria o de amar ao próximo como a si mesmo, bem como a Deus acima de tudo, é  de uma veracidade singular. Para se amar o Criador, que é ainda um grande desconhecido, é necessário amar a sua criação, sobretudo a mais encantadora, que é o ser humano, o próximo, portanto.

 Entretanto, para se amar o outro, imprescindível é se amar.

Sem o autoamor, não se dispõe de matéria-prima para amar o semelhante, muito menos o desigual. Somente se consegue doar abundantemente aquilo que se possui em abundância.

É por isso que pessoas muito rígidas consigo tendem a ser inflexíveis nas relações diárias; aqueles que não conseguem se perdoar de modo algum passam a ser rancorosos em demasia com os outros; e muitos que se culpam e se torturam mentalmente, muitas vezes, são implacáveis com o próximo.

Nesta perspectiva, observa-se que, até mesmo o amor de mãe, considerado quase sempre como o que há de mais divino, não consegue ser adequadamente demonstrado em situações de intensa dor, insatisfação e vazio pessoais.

 Em reiteradas ocasiões, assim, os filhos são convidados pela vida, desde tenra idade, a inverterem os papéis e, ao invés de receberem mimos, passarem a ser cuidadores dos pais.

Em tais circunstâncias, pode-se optar pelas vitimização, revolta ou mágoa; ou, então, tentar se preencher de um saudável auto-amor, espalhando luzes pela existência.

Certamente, esta segunda via é mais difícil porque faz um convite à transcendência, ou seja, ao indivíduo ir além do que se acha capaz; no entanto, seguramente, é o que conduz à paz e à saúde duradouras.


Para tanto, não há uma receita única infalível; antes, cada um deve encontrar seu próprio caminho, agregando ajudas nos saudáveis ramos da sabedoria humana.