terça-feira, 16 de outubro de 2012


A transitória maldade humana
Para a Doutrina dos Espíritos o mal é criação do próprio homem e
não tem existência senão temporária, transitória, uma vez
que faz parte do aprendizado
(1ª Parte) *
“E as paixões hoje são quase as mesmas de ontem, senão mais açuladas,
mais violentas e devastadoras no homem, que prossegue
inquieto.” - Joanna de Ângelis

A maldade dos homens sempre inquietou os pensadores dos mais diversos campos do saber e da ação humana: filosofia, ciência, arte, religião.  

Recentemente o Jornal do Brasil publicou em seu caderno Ideias uma resenha sobre uma obra que trata deste tema. O livro em questão é O mal no pensamento moderno, de Susan Neimam, e o título e subtítulo da matéria, assinada por Joel Macedo, é também expressivo: “O mal nosso de cada dia - Filósofa parte do terremoto de Lisboa para mostrar como o mal deixou de ser divino para se tornar criação do homem”.  

Para a autora, o terremoto de Lisboa em 1755 é um divisor de águas nas concepções sobre o mal. Antes deste evento que abalou a Europa, prevalecia “a visão de males naturais como punição para males morais”.
Nas palavras do resenhista:  
Lisboa aboliu as causas morais, absolveu Deus e os pecados coletivos, e os terremotos passaram a ser vistos como desastres naturais, algo fora da intenção divina ou responsabilidade humana. Explicar o mal como processos naturais, implicando mais a natureza em si, foi uma forma de tornar o mundo menos ameaçador. 
Deus não é mais agente punitivo, causa de males que retornam aos homens como forma de castigo. O mal, depois de Lisboa, é reduzido ao seu aspecto moral, aquele praticado pelo homem, por deliberação de sua vontade.  
Dentro de certos padrões previsíveis, os males humanos pareciam não mais destinados a inquietar os filósofos, pois que o mal parecia ter limites... O Holocausto (extermínio dos judeus e outras vítimas durante a Segunda Grande Guerra), no entanto, reavivou a discussão sobre os limites da barbárie, da perversão humana, lançando na atmosfera intelectual europeia e mundial uma onda de pessimismo e descrença.   
Apesar da descrença na Providência Divina, que se acentuaria no pós-guerra, vozes se levantaram para absolver Deus, por sua possível omissão diante das atrocidades. (Não se acredita muito Nele, mas quando ocorre algo grave, O acusamos de não se fazer presente, quando Ele, na verdade, nem mesmo fora convidado a participar de nossas vidas, antes das tragédias...)  
Estamos nos referindo particularmente a Hanna Arendt, filósofa judia, radicada nos Estados Unidos. Ela estudou profundamente as questões do mal e suas discussões estão presentes no livro Eichmann em Jerusalém, que trata do julgamento do carrasco nazista, responsável pela morte de milhares de pessoas.  
Partindo do caso Eichmann, ela pondera que o mal pode tornar-se banal e espalhar-se pelo mundo dos homens como um fungo, porém apenas em sua superfície. As raízes do mal não estão definitivamente instaladas no coração do homem e, por não conseguirem penetrá-lo profundamente a ponto de fazer nele morada, podem ser arrancadas.  
A sua defesa da Divindade encontra-se no trecho de uma carta enviada a um amigo, na qual afirma que “o mundo como Deus o criou parece-me um mundo bom”. 
Com Deus absolvido (mesmo que parcialmente) pela criação do mal e suas consequências, vejamos a visão espírita sobre esta questão. 
A visão espírita do mal 
Para a Doutrina dos Espíritos o mal é criação do próprio homem e não tem existência senão temporária, transitória, pois no arranjo maior da Vida não tem sentido a permanência do mal. O mal, desta forma, faz parte do aprendizado, porém na condição de resíduo; por isso, ele deve ser descartado em algum momento.  
Conforme Kardec aponta em Obras Póstumas, “Deus não criou o mal; foi o homem que o produziu pelo abuso que fez dos dons de Deus, em virtude de seu livre-arbítrio”. Este pequeno trecho compõe um dos mais belos ensaios que Kardec deixaria, não intencionalmente, para publicação posterior. Trata-se de O egoísmo e o orgulho: suas causas, seus efeitos e os meios de destruí-los.  
O mestre lionês, ao desenvolver o tema, parte do pressuposto de que o instinto de conservação, natural e necessário para a sobrevivência do homem, está na origem do egoísmo e do orgulho. Este e outros instintos têm a sua razão de ser. No entanto, o homem abusa destes instintos, por conta do apego às sensações que as impressões da matéria lhes causam.  
Vive, então, (e aqui começa nossa análise), a sua longa epopeia rumo à maturidade, devendo liberar-se de tudo que signifique retenção a esta fase infantil, de imaturidade, de apego ao ego, em que tudo deve girar ao nosso redor.  
Na mensagem “A lei de amor”, de Lázaro, presente em O Evangelho segundo o Espiritismo, o autor afirma que  
Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do sentimento é o amor...
Os instintos, as sensações e os sentimentos estarão presentes na existência humana em determinadas combinações, durante todo o processo evolutivo, com a preponderância de alguns sobre os outros.  
Na fase inicial de sua jornada – na condição de simples e ignorante – é possível que o instinto lhe seja o melhor guia; à medida que desenvolve as potências da alma – a inteligência, a vontade –, ele tende a apegar-se às sensações, pois não desenvolveu ainda, na mesma proporção, os sentimentos, que permanecem como presença latente e promessa futura; como a inteligência desenvolve-se mais rapidamente, na ausência de sentimentos como a fé, a esperança, a caridade, o homem tende a prender-se às sensações materiais; por fim, aliando a inteligência (instruído) e as experiências de vida (depurado), os sentimentos começam a ocupar maiores espaços de manifestações anímicas no homem.  
Podemos, assim, afirmar que os instintos e as sensações ainda convivem conosco hoje, pois, como Espíritos encarnados, imersos em um corpo físico, estamos sujeitos às leis e às atrações da matéria, porém os sentimentos tendem a dominar-nos a alma, aliados à inteligência, que já temos desenvolvido sob as suas diversas modalidades.  
Retomando o ensaio de Kardec, este vai insistir no debate em torno do egoísmo e do orgulho, situando-os como causa de todos os males.  
Um outro conceito precisamos analisar, porém, neste momento, antes de prosseguirmos e aprofundarmos esta questão. Trata-se do conceito de paixão. 
O conceito de paixão 
A definição de paixão encontrada nos dicionários pode nos ajudar a compreender, antecipadamente, o que desejam expressar os Espíritos e Kardec quando se utilizam deste termo. Segundo o Aurélio, paixão é um: “Sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; Amor ardente; Inclinação afetiva e sensual intensa; Entusiasmo muito vivo por alguma coisa; Atividade, hábito ou vício dominador”. 
Lendo um pequeno trecho das páginas iniciais de O Livro dos Espíritos (Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita), encontramos Kardec a expressar-se nestes termos (p. 25): 
O Espírito encarnado se acha sob a influência da matéria; o homem que vence esta influência, pela elevação e depuração de sua alma, se aproxima dos bons Espíritos, em cuja companhia um dia estará. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões, e põe todas as suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros, se aproxima dos Espíritos impuros, dando preponderância à sua natureza animal. (grifo nosso) 
Na mesma Introdução, quando trata da escala, das classes em que podemos situar os Espíritos em sua trajetória evolutiva, o codificador afirma (p. 24): 
Os [Espíritos] das outras classes se acham cada vez mais distanciados dessa perfeição, mostrando-se os das categorias inferiores, na sua maioria eivados das nossas paixões: o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho etc. Comprazem-se no mal. (grifo nosso) 
Cabe-nos, agora, destacar que o egoísmo e o orgulho compõem o que Kardec designa como sendo as paixões. O que podemos confirmar quando lemos mais adiante, ainda na Introdução (p. 27): 
Ensinam-nos que o egoísmo, o orgulho, a sensualidade são paixões que nos aproximam da natureza animal, prendendo-nos à matéria; que o homem que, já neste mundo, se desliga da matéria, desprezando as futilidades mundanas e amando o próximo, se avizinha da natureza espiritual. (grifo nosso) 
No capítulo em que trata da escala espírita, Kardec, ao situar os Espíritos imperfeitos na terceira ordem, traça como seus caracteres gerais (p. 89): “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes”. (grifo nosso) 
Será necessário darmos agora um salto e nos localizarmos na parte terceira de O Livro dos Espíritos (Das Leis Morais), no capítulo XII, Da perfeição moral, no item denominado justamente Paixões. Abrangendo seis questões (907 a 912), Kardec faz um estudo breve, porém aprofundado deste tema, no diálogo que trava com os Espíritos superiores que colaboram com a Codificação.  
Em resumo eis o que apreendemos: 
·        As paixões são constitutivas, fazendo parte do que podemos denominar de natureza humana. O seu princípio não é originariamente mau, pois “o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem”. São os acréscimos nossos, da vontade humana, os excessos, pois o “abuso que delas se faz é que causa o mal”. (questão 907) 
A fronteira entre o bem e o mal 
Como já comentado por Kardec em linhas atrás, certas paixões “nos aproximam da natureza animal”; desligando-se, porém, o homem da matéria e suas atrações, por meio da ação de amor ao próximo, ele se aproxima “já neste mundo” de sua natureza espiritual. (grifo nosso)  
Podemos inferir, pois, que as paixões, este “entusiasmo muito vivo por alguma coisa” ou este “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade”, na definição do Aurélio, transita na visão espírita da natureza animal à natureza espiritual. instinto de conservação que nos impele a buscar tudo para nós mesmos, no desejo de preservarmos nossa vida a qualquer custo, em detrimento da vida alheia (quando próximos da natureza animal, nos primórdios das experiências humanas), transitamos para um outro extremo, que é a abnegação, que também na definição do Aurélio significa “renunciar a; sacrificar-se, mortificar-se, em benefício de Deus, do próximo, de si mesmo”. Não à toa, o próprio sacrifício de Jesus, mormente na tradição católica (a morte na cruz), é denominado de Paixão (o próprio Aurélio indica o uso da maiúscula para assim o designar). 
·        O governo da paixão é o que determina o limite em que se situa a fronteira entre o bem e o mal. A paixão se torna um perigo quando perdemos o domínio sobre ela e causamos males aos outros ou a nós mesmos. Como alavanca que pode decuplicar nossas forças, se mal acionada e direcionada pode voltar-se contra nós e nos esmagar. (questão 908) 
Na resposta dos Espíritos a Kardec é ainda dito que as paixões se assemelham a um corcel, um cavalo veloz, “que só tem utilidade quando governado e que se torna perigoso desde que passe a governar”. A própria sabedoria popular nos ensina que a vaidade, ou o egoísmo ou o orgulho não causam mal desde que em doses adequadas. Frases  como “um pouco de vaidade faz bem à pessoa” e outras do gênero (quando ditas com sinceridade) correspondem exatamente ao que os Espíritos em outras palavras referem-se ao domínio das paixões.   
É dito também que as paixões, além de ampliar as forças humanas, “auxiliam na execução dos desígnios da Providência”.  
A paixão, como define o Aurélio, é também um ”entusiasmo muito vivo” e o termo entusiasmo corresponde a “exaltação ou arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina”, também significando “dedicação ardente, ardor”. Logo, o homem quando se torna entusiasmado, no sentido mais elevado do termo, pode auxiliar nas tarefas que a Providência Divina lhe designa e de que o homem é instrumento.   
·        O princípio das paixões tem por fundamento um “sentimento” ou uma “necessidade natural”; logo, as paixões não podem ser concebidas como um mal em si, pois elas são “uma das condições providenciais da nossa existência”; o excesso na utilização desta  ferramenta é que causa o mal; as paixões que o aproximam da natureza animal o afastam da natureza espiritual; haverá, por outro lado, “predominância do espírito sobre a matéria” quando os homens utilizarem as paixões como instrumento a serviço dos bons sentimentos, o que os conduzirá mais rapidamente à perfeição que nos cabe atingir. (questão 908) 
·        Os esforços, as tentativas para se atingir uma meta, podem conduzir o homem a “vencer as suas más inclinações”. Porém o homem não costuma exercitar-se neste sentido, o que lhe exigiria, em verdade, “esforços muito insignificantes”. (questão 909) 
A importância da vontade 
Kardec e os Espíritos relacionam nesta questão a má utilização das paixões e as más inclinações, tendências, tornando-as sinônimas. Os Espíritos então nos afirmariam, de outra forma, que o governo, o domínio que se pode ter sobre as paixões não exige, comumente, grandes esforços, mas apenas dedicação, persistência.  
·        O homem pode contar com os Bons Espíritos, cuja missão é auxiliá-los, caso deseje vencer suas más paixões ou inclinações. (questão 910) 
Há uma inscrição no pórtico de Delfos, na Grécia, dizendo que “invocado ou não ele estará sempre presente”; a Divindade ou Deus sempre está presente em nossas vidas, mesmo que não solicitemos... O mesmo ocorre com os bons Espíritos, que nos assistem, auxiliando-nos sempre. A despeito de nossa rebeldia e, às vezes, do nosso mergulho deliberado no mal, eles esperam pacientemente uma oportunidade para nos reerguer, colocando-nos em condições de retomar a caminhada no rumo do Bem. Se invocados (e invocar é solicitar ajuda ou intercessão de alguém) ou se evocados (evocar é chamar a si, reclamar a presença de alguém), os Espíritos amigos haverão de nos auxiliar a vencer nossas más paixões ou más tendências, inclinações.   
·        A vontade pode sempre triunfar sobre as más paixões, dominando-as. Os homens, no entanto, que se comprazem com o mal, que lhes proporciona prazer, pela afinidade com tudo o que se aproxima dessa sua transitória, mas obstinada natureza animal, são aqueles cuja “vontade só lhes está nos lábios”. Aqueles que compreendem “a sua natureza espiritual” lutam por reprimir as próprias más tendências. “Vencê-las é, para eles, uma vitória do espírito sobre a matéria.” (questão 911) 
É mais fácil, cômodo, enganar-se, iludir-se, do que se enfrentar nas lutas sem quartel que se tem que travar para a vitória sobre si mesmo, contra o mal existente dentro de nós mesmos. A alavanca férrea da vontade, que nos pode ajudar a remover todos os obstáculos do caminho, precisa ser forjada todos os dias, retemperada pela oração e pela vigilância.  
É necessário, portanto, estarmos atentos e em comunhão com o Alto, para não nos amolentarmos, pois é comum nos deixarmos arrastar pelos cantos de sereia da preguiça, da acomodação e dos prazeres que a isto conduz ou implica.   
·        Por fim, o antídoto recomendado pelos Espíritos no combate que se deve travar para vencer-se o “predomínio da natureza corpórea” é a prática da abnegação. (questão 912) 
A própria definição do que é abnegação indica o que nos cabe fazer: “renunciar a; sacrificar-se, mortificar-se, em benefício de Deus, do próximo, de si mesmo”. Os verbos de que o dicionarista se utiliza para definir abnegação nos sugere dois tipos de atitude: a ativa e a passiva.  
A raiz de todos os males 
Renunciar a alguma coisa é, aparentemente, uma atitude passiva de deixar-se, abandonar-se, apagar-se ou até de fugir de alguma situação. No entanto, ninguém pode renunciar às coisas do mundo em favor de algo ou alguém sem que mobilize as forças do pensamento e do coração, com “dedicação ardente, ardor” próprio de quem mobiliza o entusiasmo naquilo em que se empenha. A abnegação é, enfim, um sentimento de renúncia, de sacrifício, de anulação do ego para a vivência ativa do amor ao próximo.  
Bem, depois de termos examinado as questões 907 a 912, sobre as paixões, cabe-nos indicar que as questões que se seguirão tratam do egoísmo. Da questão 913 a 917, Kardec e os Espíritos dialogam sobre esta “verdadeira chaga da sociedade”. Às más paixões ou más inclinações Kardec designará agora como vícios, como se vê na questão 913: “Dentre os vícios, qual o que se pode considerar radical?”  
A resposta é naturalmente o egoísmo, que está na raiz de todos os males (daí o adjetivo radical utilizado na pergunta). E continuam os Espíritos: “Por mais que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela raiz, enquanto não lhe houverdes destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para esse efeito...” (grifos nossos) 
E ao final da resposta os Espíritos são claros:  
Quem quiser, desde esta vida, ir aproximando-se da perfeição moral, deve expurgar o seu coração de todo sentimento de egoísmo, visto ser o egoísmo incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Ele neutraliza todas as outras qualidades. 
A ideia de que o egoísmo e o orgulho possam ser situados como causa de todos os males humanos pode causar mal-estar a muitos que se propõem a examinar estas questões. Os Espíritos e Kardec, de modo simples e coerente, são muito felizes em situar no campo das causas últimas o papel das paixões ou dos sentimentos do egoísmo, do orgulho e outros assemelhados. Tudo o mais estaria no campo dos efeitos, que podem tornar-se causa de outros efeitos. A miséria sócio-econômica, por exemplo, pode ter sua origem na extrema concentração de renda em determinado país ou região. Na visão espírita, sem desprezar as análises sociológicas, econômicas ou quaisquer outras, a causa deste fenômeno está no egoísmo e no orgulho dos homens, em última instância. A extrema concentração de renda, alegada como causa, na verdade seria um efeito da causa primordial que são as  más paixões. 

* Leia a conclusão deste artigo na próxima postagem.