DOIS CÃES
Um homem que era dono de dois cães ensinou um a caçar e fez
do outro seu cão de guarda.
E, então, cada vez que o cão de caça saía a caçar e
trazia alguma presa, o dono atirava um pedaço dela também para o outro.
Indignado, o cão caçador passou a censurar o cão de guarda, pois, enquanto ele
próprio vivia saindo e se estafando, o outro nada fazia e se deliciava com os
frutos do esforço alheio. Então o cão de guarda lhe retrucou:
“Mas não faça
críticas a mim, e sim ao meu dono!
Foi ele que me ensinou não a trabalhar, mas
a desfrutar do trabalho alheio”. (Os cães. – Esopo)
Podemos nos apropriar dos dois cães metafóricos de Esopo e
ver neles duas instâncias de nossa alma. A que busca e a que retém. Embora
lados da mesma moeda, não se confundem em suas ações e motivações intrínsecas.
A parte de nós que caça é aquela que se aventura pelo mundo.
Procura conhecê-lo e identificar oportunidades. Fareja coisas e situações que
lhe sejam úteis.
Interage com o ambiente, com as pessoas, objetos e
circunstâncias, e procura obter para si o que julga necessário à sua
subsistência.
O exercício da caça é perigoso e requer técnica. Não é o
simples ver e colher, mas implica em, identificando a presa, preparar a tocaia,
o bote e consumação do ato.
Nessa atividade, inteligência e força são
requeridas.
A estratégia deve ser bem traçada previamente, e opções
consideradas, caso falhe o primeiro plano.
Em várias situações o caçador pode
ferir-se seriamente, comprometendo a própria vida – especialmente quando o alvo
é cobiçado por concorrentes tão ou mais preparados.
Caçar é uma atividade para fora, para buscar e capturar. É
dinâmica e plena de energia. Mente e corpo em atuação harmônica, para que a
presa não escape.
A contraparte que guarda, volta-se para dentro e se preocupa
com a manutenção e o zelo.
Está interessada em reter, sem cuidar de buscar
mais. Não está atrás de oportunidades fora, mas procura riscos de vazamento e
perda. Cuida de possíveis ladrões, sem olhos para presas furtivas.
Não interage
– reage às ameaças.
Não se estica no espaço para o bote, mas encolhe-se na
proteção e no resguardo. Tocaia, armando ratoeiras. Corre sua dose de risco,
mas de uma natureza muito diferente da do caçador.
O primeiro cão é ativo; o segundo é passivo.
O equilíbrio das coisas exige as duas performances.
Parafraseando Eclesiastes, há um tempo para caça, e outro para preservar o que
se caçou.
Perdemos a harmonia quando privilegiamos qualquer um desses aspectos
de nossa conduta além da conta justa. Se caçamos demais, roubamos o meio em que
vivemos.
Açambarcamos o que não devemos com o discurso equivocado do
merecimento –“fiz por onde!”
Se o que nos move é apenas o prazer da atividade
física e o sangue da presa, passamos a predadores nocivos ao meio. Nossa fome
nunca é saciada, porque uma presa abatida é estímulo para buscar outra, e mais
outra...
Queremos sempre mais e nunca preenchemos esse oco na boca do estômago,
porque buscamos fora o que só podemos encontrar dentro.
Mas esse mal traz consigo seu próprio remédio. Como diz a
música popular,
“quem mata o que não se come, não perde por esperar”.
Mais cedo
ou mais tarde nosso tempo se esgota e vamos nos dar conta de que tanta ação
resultou em nada de efetivo para nosso crescimento espiritual.
Por outro lado, se guardamos demais, transformamo-nos em
sovinas da vida. Somos como o tolo do Evangelho, que armazenou para as traças e
os ladrões, sem perceber a morte iminente, que pode nos acometer em qualquer
instante e lugar.
Ficamos obesos, preguiçosos e lentos, pela excessiva
permanência nas torres de vigília. Tememos tudo e todos, como ladrões
potenciais das riquezas que julgamos possuir. O menor gesto do nosso vizinho é
uma ameaça à nossa tranquilidade.
Olhamos o mundo com os olhos esgazeados da
desconfiança e do medo. O afã de reter e proteger nos consome. Nossa vida perde
toda a graça e tudo se resume ao zelo com as posses.
E, assim, não percebemos
quando passamos de possuidores a possuídos – nossos bens nos escravizam.
Quando nos dirigimos para nosso trabalho, na busca da
sobrevivência, que cão late mais forte dentro de nós?
O caçador voraz, que de
tudo quer se apropriar, ou o vigilante paranoico, que vê ameaça nas menores
sombras?
Qualquer um deles que prevalecer tem a capacidade de tornar
nossa vida um inferno. Deveríamos escolher o caminho do meio, como já
preconizavam os antigos sábios.
Caçar na justa medida da nossa fome; guardar o
que vale a pena ser guardado. O conselho de Paulo, apóstolo, é de grande
sabedoria:
“Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém. Todas as coisas me são
lícitas, mas não me deixarei dominar por nenhuma” (I Cor, 6:12).
Buscar o que necessitamos no mundo é da lei de
sobrevivência. Buscar o excesso corre por nossa conta e risco.
Guardar o que realmente nos aproveita é medida de precaução
e bom senso – previdência. Armazenar em excesso engorda e entorpece o espírito.
Tanto uma postura quanto outra é muito difícil. Mas quem
disse que crescer é fácil?
Nossa sociedade predispõe e estimula ferozmente o
consumismo (caça) desenfreado.
Ao mesmo tempo, o clima de insegurança que nos
envolve, até por consequência do muito ter, torna-nos demasiadamente apegados a
coisas e valores passageiros.
Mas os dois cães habitam em nós – somos nós. Qual
dos dois alimentamos mais?
José Lourenço de Souza Neto – O Consolador