sábado, 5 de maio de 2012


O ESPIRITISMO É UMA SÍNTESE DOS ESFORÇOS HUMANOS PARA COMPREENSÃO DA VIDA.
(Parte 2 e final) *
“A fé ingênua, imposta pela autoridade e a tradição, derrete-se  como  cera  frágil, ao  fogo  da   razão.”  - Herculano Pires 


Segundo Herculano Pires (1),

“(...) Os mitos do “horizonte agrícola” (2) exercem ainda poderosa influência em nosso mundo.  Isso contribui para o descrédito das religiões, em face dos estudiosos de história, e mais ainda, dos que tratam de mitologia.
Rogério Coelho
Osíris, por exemplo, como típico deus agrário, parece constituir uma prova das origens míticas do dogma da ressurreição. Quando os cristãos proclamam a ressurreição de Cristo, os estudiosos sorriem com desdém, lembrando a ressurreição de Osíris.

Vejamos por quê: Osíris, filho da Terra e do Céu, cresce, viceja, esplende, e então é ceifado, retalhado ou moído, e por fim enterrado. Mas da terra, como as sementes, Osíris renasce, para começar novo ciclo, semelhante ao anterior. Morto e espostejado por Set, seu irmão, é ressuscitado por sua esposa e irmã, a deusa Ísis, através de rituais especiais.   Está bem visível a analogia agrária. Osíris é como o trigo, que depois da ceifa sofre a debulha, volta a ser enterrado na semeadura, e por fim renasce. Às vezes, associado ao Nilo, é um deus fluvial. Cresce com a inundação, declina e morre na vazante, mas depois ressuscita e faz nascerem as plantas, com o poder mágico das águas.
Osíris, deus-fluvial, está naturalmente ligado ao cultivo da terra. No seu aspecto fluvial, porém, apresenta-nos um elemento novo, que é a magia da água. Vemos nele a “água pura”, que serve para purificar a terra seca, estéril, poeirenta, e com ela os homens e os animais; a “água da renovação”, usada largamente nas abluções sagradas e utilizadas nas formas batismais, como no caso clássico de João Batista; e, por fim, a “água fecundante”, que representa a virilidade do deus-fluvial, fecundando a terra. 
O dogmatismo religioso não consegue furtar-se ao impacto dessas comparações. Somente a “fé raciocinada”, como queria Kardec, pode enfrentar serenamente essa análise histórica, sem perder-se na negação ou extraviar-se na dúvida. De outro lado, a razão céptica, por mais cultivada que seja, não consegue penetrar a essência do mito agrário. Assim como a fé necessita da luz da razão, esta luz, por sua vez, necessita do pavio da fé.
O Espiritismo demonstra que o mito agrário é essencialmente analógico, nasce do poder comparativo da razão.  Esse poder assimilou, desde a era tribal, a ressurreição humana, demonstrada pelos fatos mediúnicos, à ressurreição vegetal. Sem a prova material da existência do Espírito, da sobrevivência do homem, o mito agrário se reduz ao seu aspecto analógico, não deixando perceber os motivos profundos da analogia. Daí a descrença e o sorriso irônico dos “sábios”, que na Verdade deviam esperar para sorrir mais tarde, uma vez que os que riem por último riem melhor. 

Da impregnação mítica do pensamento religioso 

Agrário, também, é o mito da Virgem-Mãe, que adquire amplitude social e política na doutrina da teogamia egípcia. A terra, deusa-mãe, é virgem antes e depois do parto, pois não sai maculada da fecundação e está sempre em estado de pureza. Fecundada pelo deus celeste, floresce nas messes, embalando no seu colo materno o Messias, ou seja, o deus-solar, que traz a luz, a Vida e a fartura das colheitas após o inverno. O mito agrário da Virgem-Mãe tem ainda o seu aspecto astronômico, à semelhança de todos os deuses-agrários, uma vez que a Terra e o Céu se conjugam no mistério da fecundação. A constelação da Virgem é a primeira a aparecer no Céu, após o solstício do inverno. Dela nasce o Sol, o Messias. E a constelação continua virgem, após o nascimento. A palavra “messe”, como se vê, tem um grande poder mítico: dela derivam o nome do Messias e do culto que lhe atribuem, mais tarde representado na liturgia da missa. 
Assim também o mistério do pão e do vinho. O pão representava nos mistérios gregos a deusa Demeter, ou a Ceres para os romanos, mãe dos cereais. O vinho representava Baco ou Dionísio, deuses da alegria, da vida, e, portanto do Espírito. Comer o pão e beber o vinho era simbolizar a fecundação da matéria pelo poder do Espírito. A matéria impregnada pelo poder do Espírito era representada, nas cerimônias religiosas pagãs, pelo pão embebido de vinho.  Quando os hebreus chegaram a Canaã encontraram essa prática entre os cananitas.
Todo o horizonte agrícola se mostra dominado por essa simbologia mágica do pão e do vinho, de que o próprio Cristo se serviu, não para sujeitar os homens ao símbolo, mas para ilustrá-lo através dele.
Bastam esses exemplos, para vermos a intensidade da impregnação mítica do pensamento religioso contemporâneo. O Espiritismo luta contra essa impregnação, libertando o homem do peso esmagador do horizonte agrícola, para conduzi-lo ao horizonte espiritual, que Jesus anunciou à mulher samaritana.
Se os homens do horizonte agrícola não podiam conceber o Deus-Único senão por uma forma sincrética, uma mistura de Deus e de Homem, os do horizonte espiritual irão concebê-lo de maneira mais pura. Não se trata, porém, de dois Deuses, e sim de um mesmo Deus, visto de duas maneiras.  Por trás de todas as formas de Deus, encontra-se uma realidade única, que é o próprio Deus. Isso o que permitia a Jesus dizer-se filho de Jeová e ao mesmo tempo apontar o Seu Pai universal, em espírito e verdade.
Da mesma maneira, os princípios fundamentais da Bíblia não são negados, mas confirmados pelos Evangelhos. A Lei não é destruída, mas confirmada. Mais de uma vez nos servirá de esclarecimento a afirmação de Paulo: “A lei era o pedagogo para nos conduzir a Cristo”.
  
O processo histórico não é contraditório, mas progressivo

A Torá judaica não valia pelas suas normas exteriores e transitórias, circunstanciais, mas pela sua substância. Essa substância é que prevalece, sendo confirmada por Jesus, nos dois mandamentos principais: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. O processo histórico não é contraditório, mas progressivo. 
Quando não sabemos enxergar as linhas da evolução, em seu desenvolvimento natural, enxergamos apenas as aparentes contradições das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a litolatria até as formas mitológicas, e destas à concepção espiritual que hoje aceitamos, assim também os princípios e os postulados bíblicos vão atingir sua verdadeira expressão nos Evangelhos, e por fim sua espiritualização no Espiritismo.
Há um encadeamento perfeito no processo histórico, que não podemos perder de vista.   Graças a esse encadeamento os Espíritos puderam dizer a Kardec que o Espiritismo é o restabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a última fase do desenvolvimento histórico do Cristianismo.  Quando sabemos que este originou do Judaísmo, representando um desenvolvimento natural da religião judaica, então compreendemos que o Espiritismo, como queria Kardec e como sustentava Léon Denis, é o ponto mais alto que podemos atingir, até hoje, em nossa evolução religiosa. Jeová, o deus-agrário, transforma-se no Pai evangélico, para chegar à “Inteligência Suprema”, no Espiritismo. Jeová se depura, e com ele se depuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam na “adoração em espírito e verdade”, de que falava Jesus.
O “horizonte agrícola” permanece subjacente em nossa mentalidade moderna. Ainda não conseguimos libertar-nos de suas fórmulas agrárias, de seus deuses e seus cultos, carregados de sacrifícios animais e vegetais. O “horizonte civilizado” desenvolve-se sob os signos agrícolas. Mas virá, por fim, o momento de transição para o “horizonte espiritual”, que assinalará uma fase de transcendência na vida humana.
Nos Estados Teológicos, a estrutura política assemelha-se à estrutura metafísica ou divina.   A Religião e o Estado se modelam reciprocamente, uma sobre o outro, e vice-versa. A classe sacerdotal, racionalmente organizada, elabora os mitos no plano intelectual, criando a teologia, estruturando o ritualismo, estabelecendo a genealogia dos deuses e as formas de relações entre estes e os homens. 
Na teogamia egípcia a genealogia divina se prolonga na genealogia humana dos faraós, graças à fecundação da rainha por um deus. Amalgamados assim os dois poderes, o temporal e o divino, na própria carne dos monarcas, os Estados Teológicos tornam-se monolíticos. Ainda na Grécia vemos isso:  a figura humana de Zeus, na sua corte olímpica, refletindo no espaço a estrutura política da nação”. 
Evolução lenta e penosa
“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”.
-
Jesus. (Jo.,8:32.)

Continuemos com Herculano Pires na obra citada:

“(...) Com o tempo o homem vai se libertando de si mesmo, da sua condição humana, construída penosamente através das estruturas sociais do horizonte tribal e do horizonte agrícola, procurando uma forma mais precisa de definição de sua natureza. Na organização tribal, ele se libertou da condição animal e do jugo absoluto das forças da Natureza, para elaborar a sua condição própria. Na organização agrícola, ele aprendeu a dominar a Natureza e submetê-la ao seu serviço, mas caiu prisioneiro da estrutura social. No horizonte civilizado ele começa a romper os liames da organização social, para descobrir-se a si mesmo, o que só fará quando se tornar um indivíduo.
A evolução do Espírito está bem clara nesse imenso processo de desenvolvimento histórico da Humanidade. O homem se eleva progressivamente da selva à civilização, através de períodos históricos definidos como “horizontes”, ou seja, como universos próprios, nos quais os diferentes poderes da espécie vão sendo treinados em conjunto, até que o desenvolvimento da razão favoreça o processo de individualização. Primeiramente, o homem se destaca da Natureza através do conjunto tribal; depois, reafirma a sua independência através dos conjuntos mais amplos das civilizações agrárias; e, depois, ainda, constrói os conjuntos mais complexos das grandes civilizações orientais. Nesses conjuntos, porém, o homem descobre a possibilidade de destacar-se individualmente da estrutura social. O espírito humano se afirma como individualidade, como entidade autônoma, capaz de superar não somente a natureza, mas a própria Humanidade”.

Segundo Joanna de Ângelis: 
  
“(...) O ser humano, avança para a Realidade, na qual, queira ou não, se encontra mergulhado, por ser centelha viva e inextinguível...
Lentamente a evolução vai se impondo de maneira inevitável porque o progresso é inestancável. Passa a onda que avassala por um momento, sucedendo à outra, que também desaparecerá, e a busca do “Si” propiciará diferente conduta, abrindo espaço para a autenticidade, para a interiorização, para o autodescobrimento... 

É necessário guardarmo-nos da obtusidade dos
misoneístas revéis
 
Por muito tempo a prevalência do mito no inconsciente humana regerá o seu comportamento. Inobstante essa presença, desenhar-se-ão programas de ascensão, mediante os sonhos de beleza, de paz e liberdade plena, que darão surgimento a futuros arquétipos que se insculpirão no inconsciente, procedendo das experiências no mundo espiritual, onde a vida estua, e ressumando na Terra, onde se desenvolverão os programas da evolução”.
A Doutrina Espírita nos coloca frente a frente com o “horizonte espiritual” que Jesus mencionou à mulher samaritana; horizonte este totalmente diferenciado de todos os outros pelos quais temos passado nesta longa peregrinação evolutiva desde os tempos das cavernas e das tribos primitivas...
Para não obstruirmos o nosso processo evolutivo, deixando-o fluir naturalmente, sem peias, faz-se necessário guardarmo-nos do apoucamento e obtusidade dos misoneístas revéis que, anestesiados em ancilosante acomodação não se deixam permear pelo conhecimento espírita, mimetizados que estão pelo verniz dos mitos e fantasias de antanho dos quais não abrem mão, presos que estão aos “horizontes” antigos.
Conhecendo as raízes histórico-atávicas dos arraigados costumes que se perdem na noite dos tempos, fica mais fácil identificar – hodiernamente – os seus corolários e, consequentemente podemos trabalhar com mais eficiência no sentido de erradicá-los dos arraiais espiritistas, livrando tanto o Movimento Espírita quanto as Casas Espíritas de todos os “usos e costumes” ainda comprometidos e atrelados ao passado de ignorância de onde procedemos.  
Tal a maneira de projetarmo-nos na direção do “horizonte civilizado”, ou seja, do “horizonte espiritual”  atentos às palavras de Jesus à Samaritana (3):
“(...) Vós adorais o que não sabeis; mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; porque o Pai procura a tais que assim O adorem”.

Notas: 
(1) Pi
res, José Herculano. O Espírito e o Tempo. 3.ed.São Paulo: EDIECEL, 1979.
(2) Segundo patamar da evolução humana. (Para maiores esclarecimentos leia a 1ª parte deste artigo, na edição anterior desta revista.)
(3) João, 4:22 e 23.