Nós e os animais
“Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual deveria levar o nome que o homem lhe desse.” (Gênese, 2-3)
A Bíblia relata que os
animais foram criados por Deus de maneira semelhante à criação do homem.
Esse
sentido figurado da modelagem pode ser interpretado, na concepção evolutiva,
como o início da vida na água e a transição desta para a terra, com a formação
de organismos mais complexos.
Nesse ponto, o criacionismo não contradiz a
teoria evolucionista, excetuando na ideia de aparecimento quase simultâneo
(humanos e animais), com ligeira primazia temporal ao homem.
No evolucionismo,
organismos marítimos teriam precedido aos demais e o homem, ao contrário da
descrição bíblica, foi o último elo da corrente.
A convivência entre o
homem e o animal demorou muito tempo para ocorrer. É possível supor que o
interesse recíproco entre eles tenha se desenvolvido por fatores ligados à
sobrevivência.
Os animais, em período de escassez de comida, aproveitavam as
sobras de alimentos deixados por humanos e, assim, rondavam os grupos humanos
em deslocamento.
Por seu turno, o homem mantinha-se atento quanto à proximidade
dos animais, observando seus comportamentos, caçando-os para saciar a fome,
especialmente quando passaram a dominar o fogo.
Essa proximidade, que
foi se estreitando, levava a repetidas escaramuças, algumas vezes com perdas de
ambos os lados.
Por outro lado, com frequência, nossos antepassados copiavam
estratégias dos animais como, por exemplo, os comportamentos dos antropoides na
localização de alimentos, dos roedores nos debates das primeiras coberturas dos
troncos de plantas até a obtenção da polpa comestível, das aves e insetos, nas
elaborações de armadilhas e disfarces para evitar predadores etc.
Pode-se supor
que os resultados dessas observações facilitaram as primeiras tentativas de
domesticação de algumas espécies. Esse ganho, ligado à sobrevivência,
impulsionou o homem para o domínio do mundo animal, levando-o a supor-se,
equivocadamente, como rei da criação.
Já há muito tempo, o
homem dedica-se também à criação de várias espécies destinadas ao abate, tais
como a bovina, a suína, a avícola e a marítima.
Nesse negócio rentável, os
animais crescem em número preocupante, pois, para isso, precisam de extensas
áreas de terras desmatadas, além de recursos hídricos, cinco vezes maiores do
que o necessário para produzir a mesma quantidade de cereais (FAO/Wikipédia).
Esses são apenas um dos problemas relacionados à forma como nós, os humanos,
lidamos com os animais. Percebendo a gravidade desses problemas, inúmeras
pessoas se organizaram na formação de entidades de defesa do bem-estar e da
vida animal.
Esses movimentos cresceram e influenciaram a legislação, de modo que
temos, hoje, responsabilidades sociais bem definidas em relação aos animais e
isso representa um avanço, contudo, não ainda suficiente.
No lado oposto à
criação e matança de animais para o consumo, temos problemas nos cuidados com
os chamados animais de estimação. Essa também é uma relação delicada, que será
abordada a seguir.
*
Certo dia uma
universitária relata ao professor o cuidado que dispensa à sua cachorrinha.
Conta que o segundo dormitório do apartamento, em que reside com seu marido,
pertence à sua mascote e que esta somente vai dormir após ter seus dentes
escovados por ela (“mamãe”) e receber afagos do dono (“papai”).
O professor
aproveita-se de uma pausa na descrição que detalha esses excessos de mimos e
diz à jovem: Vocês precisam de um filho para deixar de brincar de mamãe-papai.
Considerando que essa
falsa maternidade vem se alastrando, a sugestão do professor tem sentido,
principalmente ao se levar em conta a impossibilidade de o animal preencher
todos os requisitos envolvidos na troca entre pais-filhos.
É sintomático que,
em alguns países europeus, a diminuição da natalidade tem uma relação direta
com aumento da população de animais de estimação.
Esse fenômeno se tornou um
excelente negócio em quase todo o mundo, gerando ofertas que vão das rações e
medicamento a objetos que incluem produtos de higiene, roupas e brinquedos
semelhantes aos usados por uma criança, o que reforça o sentimento maternal.
O
exagero chega ao ponto de uma convivência promíscua entre humanos e animais,
com estes coabitando camas e partilhando momentos de refeições.
Por que pessoas “amam”
tão intensamente os animais, como cães, gatos, coelhos, macacos, tartarugas
etc.? Primeiramente porque é fácil controlá-los e manejá-los.
Podemos dispor
deles conforme nosso humor: brincamos e os afagamos a qualquer momento e,
também, a qualquer momento os deixamos de lado.
Treiná-los em obediência
(“deite, pegue, aqui, dê a pata”) é muito mais fácil do que educar uma criança.
Se, por algum motivo, não formos bem-sucedidos, existem clínicas que dispõem de
profissionais prontos a nos socorrer mediante, é claro, a remuneração ditada
pela lei de “oferta e procura”.
Em segundo lugar, esse “amor” aos animais
reside no enorme bem-estar que eles produzem a todos os seus donos. É muito
prazeroso brincar ou apenas observar os animais.
A terapia já descobriu isso há
um bom tempo e os vem utilizando como recursos terapêuticos para diferentes
problemas e incapacidades do homem.
A doutrina espírita
entende a vida animal como um dos elos do processo evolutivo no qual estagia o
espírito.
Nesse sentido, dentro da condição humana, ainda temos muito a percorrer.
Mais do que discutir nossos direitos sobre a vida animal, se é que temos algum,
precisamos repensar nossos deveres.
De modo geral, entre outras tarefas
coletivas, uma das mais importantes relaciona-se aos cuidados com a fauna e
flora do planeta.
Para repensar essa relação com os animais, antes de tudo é
necessário esquecer a vaidosa noção de reis da criação. Somente assim poderemos
ser admitidos na posição de defensores do mundo animal, equilibrando essa
relação que parece ser menos meritória ao homem.
ALMIR DEL PRETTE