sábado, 29 de agosto de 2015

                                                              Cegueira

O ínclito escritor português, José Saramago, assim inicia sua obra:
(...) O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito elétrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do para-brisa, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta:

Estou cego.

A trama, muito bem engendrada pelo magistral escritor, envolve o leitor e o faz refletir acerca das misérias humanas. A obra é permeada por situações angustiantes, degradantes, aflitivas, que denotam a condição humana.

 É um libelo contra as injustiças sociais, contra a moral e os costumes aviltantes.

Em O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo X, intitulado: Bem-aventurados os que são misericordiosos, encontramos o excerto do Mestre Nazareno, que transcrevemos abaixo:

Como é que vedes um argueiro no olho do vosso irmão, quando não vedes uma trave no vosso olho? 

Ou, como é que dizeis ao vosso irmão: ─ Deixa-me tirar um argueiro do teu olho ─, vós que tendes no vosso uma trave? Hipócritas, tirai primeiro a trave do vosso olho e depois, então, vede como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão. (Mateus, 7:3 a 5). 

Interessante o paralelo que se pode estabelecer entre a obra de Saramago e a passagem evangélica. Em verdade, para se analisar as mazelas que estão em nós mesmos, faz-se mister que nos transportemos para fora de nós mesmos e nos perguntemos:

“Que pensaria eu se visse alguém fazer o que faço?”.
É imperioso que nos coloquemos diante de um espelho e nos autoanalisemos.

Diz-nos o evangelho que o orgulho e a vaidade nos obstam tal reflexão.
Curiosamente, porém, Saramago elege a figura feminina como a única a conseguir ver diante da cegueira branca.

Assim, a obra é passada ao leitor pelos olhos daquela única personagem que vê.

Não é fortuita tal eleição pelo feminino. Já é um atributo da mulher a nobreza nos sentimentos. Logo, ela não precisa ver para compreender determinada situação

. Ao contrário, ela sente e, por sentir, consegue compreender e, por conseguinte, AMAR!

Falta-nos justamente essa percepção, essa sublimação dos sentimentos, já que temos os olhos oblíquos para o negativo, para os estereótipos, para a maledicência, para o orgulho e a vaidade.

O Mestre de Nazaré já sabiamente nos recomendava

tirai primeiro a trave do vosso olho e depois, então, vede como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão”,

quer dizer, devemos envidar todo o esforço para nos tornarmos bons, probos, justos, caridosos.

E, imbuídos de virtudes espirituais, ao invés de julgarmos e achincalharmos os nossos irmãos, devemos traçar meios de melhor auxiliá-los, para a sua e a nossa edificação rumo ao Infinito de Eterno Amor.  

O consolador

Referências bibliográficas:  
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 131. ed. Brasília: FEB, 2013. 
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Disponível em:
http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/