quinta-feira, 12 de março de 2015

                                                                  GENTE NA PRAÇA


Conta Jesus que o Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que saiu ao amanhecer, por volta de seis horas, a fim de contratar servidores para a sua vinha.
Postavam-se na praça os candidatos, chamados jornaleiros.
É prática usual, ainda hoje, envolvendo trabalhadores braçais contratados para serviços avulsos no campo. Levam a marmita com singela refeição, que comem sem aquecer. Por isso são conhecidos como bóias-frias.
Explica Jesus que foi contratada uma turma, pessoal madrugador.
Por volta das nove, o dono da vinha retornou e ainda encontrou desocupados.

– Ide, também vós para a vinha, e vos darei o que for justo.

Por volta de meio-dia, chamou mais gente.
Às quinze horas, nova contratação.
Finalmente, às dezessete horas, falou a um grupo remanescente:

– Por que estais aqui, o dia inteiro desocupados?
– Porque ninguém nos contratou.
– Ide também vós para a vinha.

Ao anoitecer, recomendou ao seu administrador:

– Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, começando pelos últimos até os primeiros.

Seguindo a orientação do patrão, o acerto de contas foi feito a partir da turma das dezessete horas. Um denário a cada um, correspondente a um dia de trabalho.
Quando chegou a vez dos trabalhadores contratados às seis da manhã, estes ficaram indignados.
Não era para menos! Mourejar de sol a sol, durante doze horas, e ganhar o mesmo salário de alguém que serviu apenas uma hora, configura flagrante injustiça!
Prato cheio para um sindicato rural. Daria boa briga na justiça trabalhista.
Como nos tempos de Jesus não havia nada disso, tudo o que o pessoal injustiçado pôde fazer foi reclamar com o patrão:

– Estes que vieram por último só trabalharam uma hora e tu os igualaste a nós, que suportamos o peso do dia e o calor do sol.

Dirigindo-se ao porta-voz dos reclamantes, esclareceu o vinhateiro:

– Amigo, não faço injustiça. Não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu e vai; pois quero dar a este último o mesmo que a ti. Porventura não me é lícito fazer o que eu quero com o que é meu? Ou o teu olho é mau, porque eu sou bom? Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos.

Apreciada sob o ponto de vista humano, esta parábola seria a consagração da injustiça nas relações trabalhistas, embora devamos considerar que o patrão, o dono do dinheiro, tem o direito de remunerar como lhe aprouver, desde que ocorra acordo prévio.
Não competia aos trabalhadores nenhum questionamento.
Significativa a sua indagação:

– …Teu olho é mau porque eu sou bom?

Olho mau é sinônimo de inveja.
Usa-se outra expressão: olho gordo. Cobiçar o alheio, ou sentir-se diminuído por não ter o mesmo.
Não seria a reclamação do trabalhador apenas um exercício de inveja? Afinal, ele recebeu o que fora acertado.
Bom lembrar que a inveja é mal tão antigo quanto o Homem.
Foi a motivação do primeiro fratricídio, na história bíblica. Caim matou Abel por imaginar que seu pai dava mais atenção ao irmão.
Nas empresas, há sempre gente reclamando de colegas supostamente privilegiados. São criticados os que se destacam, os que são promovidos, tachados de bajuladores e hipócritas.
As pessoas têm facilidade para se considerarem injustiçadas, sempre que os seus interesses são contrariados.
Não obstante, forçoso reconhecer que algo anda errado numa empreitada em que alguém ganha doze vezes mais do que um colega que executa o mesmo serviço.
Com o aperfeiçoamento das regras do trabalho, cuja orientação principal determina uma isonomia, igualdade de salário para identidade de funções, seria de justiça o pagamento por horas trabalhadas.
  
Esta parábola, pela aparente injustiça que encerra, é um desafio aos intérpretes do Novo Testamento.
A solução está no objetivo de Jesus, ao enunciá-la:
Simbolizar o ingresso no Reino de Deus.
Lembremos, em princípio, como o Mestre sempre frisou, que o Reino não tem localização geográfica, na Terra ou no Além.
Atentemos à sua proclamação (Lucas,17:21):

… o Reino está dentro de vós.

Então, amigo leitor, trata-se de um estado de consciência.

– Ah! Sinto-me tão bem! Leve, tranqüilo, em paz!
Elevou-se ao Céu.

– Ah! Vida cruel! Estou atormentado, idéias infelizes, vontade de morrer!
Escorregou para o inferno.

Bem, sendo assim, como é que vamos entrar no Reino, ou, mais exatamente, como é que o Reino vai se instalar em nós?
Começamos a decifrar esse mistério lembrando uma expressão significativa de Jesus (João, 5:17):

– Meu Pai trabalha desde sempre, e eu também.

Tudo é movimento no Universo, na dinâmica da evolução, desde o verme que nas profundezas do solo o fertiliza, aos mundos que se equilibram no espaço.
Deus, o trabalhador incansável, que tudo projetou e construiu, é o motor divino que sustenta a celeste movimentação.
Jesus, Espírito puro e perfeito, chamado a nos governar, entrega-se a esse mister desde a formação da Terra.
Filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança, temos potencialidades criadoras que, caracterizam nossa filiação divina e nos realizam como Seus filhos, quando as mobilizamos.
Isso implica em ação. Ocuparmos o tempo e a mente em atividade disciplinada.
Esse empenho chama-se trabalho.
Quando nos dedicamos a algo produtivo, pomos ordem na casa mental, sintonizamos com os ritmos do Universo e guardamos a paz, o regalo do Céu.
Detalhe importante:
O salário do Reino não é o resultado do trabalho.
É o próprio trabalho!
Aqueles que mais cedo despertam para esse imperativo, desde logo sintonizam com as Fontes da Vida e se habilitam a uma existência feliz.
Os retardatários sujeitam-se a problemas e dores, perturbações e dissabores, como ferrugem em motor desativado.
  
Entrar nesse estado sublime de sintonia com os ritmos do Universo depende de nós.
Situemos nossa posição na Terra como a de pessoas numa praça.
As motivações são variadas:

• Espairecer.

• Matar o tempo.

• Namorar.

• Bater papo, trocando abobrinhas.

• Exercitar a maledicência.

• Satisfazer um vício.

• Ouvir música.

• Apreciar a pregação religiosa.

• Cultivar a leitura.

Diariamente, Deus nos convida à Seara Divina.
Há quem imagine que seria dedicar uma hora semanal ao esforço da fraternidade, atendendo pessoas carentes em hospitais, favelas, organizações filantrópicas…
O que Deus espera de nós é algo bem maior.
Não o esforço de algumas horas, mas a consagração da existência.
Não significa que devamos passar o tempo todo em instituições de beneficência, mas que em todo o tempo encaremos nossas atividades e relacionamentos como parte de um contexto – o de trabalhadores da Vinha.
Isto é, que nos comportemos, onde estivermos, guardando a consciência de que somos servidores do Senhor, com compromissos e responsabilidades inerentes a essa condição.

Na praça de nossas cogitações, ocorre perene convocação, com adesões em tempo variado, envolvendo a jornada humana.

• Seis horas.
Infância.

• Nove horas.
Adolescência.

• Meio-dia.
Maioridade.

• Quinze horas.
Maturidade.

• Dezessete horas.
Velhice.

Multidões não atendem em tempo nenhum.
Regressam ao Plano Espiritual com lamentáveis comprometimentos morais, sujeitando-se a amargos períodos de sofrimento e desajuste.
Por isso Jesus diz que muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
Na verdade, todos são chamados.
Se poucos os escolhidos, é porque raros atendem à convocação.

A parábola tem uma dificuldade final de interpretação.
Como situar a condição dos trabalhadores que começaram por último e foram os primeiros a receber o salário?
Como interpretar a afirmativa: os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos?
Bem, caro leitor, essa expressão está contida num texto imediatamente anterior, quando Mateus reporta-se ao jovem que não se sentiu em condições de acompanhar Jesus, porque era muito rico.
O Mestre teria encerrado o episódio com aquele mesmo comentário, enfatizando que posições privilegiadas na Terra podem inibir o homem para os serviços da Seara.
Segundo alguns exegetas, a expressão foi repetida na parábola por erro dos copistas encarregados de reproduzir os textos, o que acontecia, não raro.

Poderíamos concluir, em síntese, que é fundamental não perdermos tempo na praça existencial, dispostos aos serviços da Seara, onde estivermos, na atividade profissional, na vida social, no convívio familiar…

Somente assim faremos jus ao salário de bênçãos que o Senhor oferece aos que atendem à Sua convocação.

Richard Sionetti