domingo, 23 de março de 2014

                   Respeitar sim, repetir não

Sabemos que os textos evangélicos sofreram muitas alterações ao longo dos séculos, para atender a interesses do mundo, ditados pelo culto do poder e da ambição, ou até pela fé ingênua e cega que pretendia converter, fazendo concessões.

Nesse processo, incorporaram-se rituais e crenças mágicas, muito anteriores a Jesus, dando-se-lhes estatuto cristão.

A fé raciocinada encara sem medo esses fatos, já constatados pela História, e busca a essência dos ensinamentos do Mestre. Aliás, já nos advertia Kardec, no primeiro parágrafo da introdução a “O Evangelho segundo o Espiritismo”:

 “Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. 

As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente inatacável”.

O ensino moral do Evangelho é inatacável, sem dúvida. É o evangelho propriamente dito. 

O mais pode até ser lenda, ou é, pelo menos, questionável, passível de investigação histórica e científica. 

Portanto, não há por que se repetirem, em nosso meio, velhas abordagens fantasiosas que vestem Jesus de magia e ilusão.

 O Mestre se basta, dispensa enfeites que não concorrem para amadurecer o Espírito, como é o caso das festas marcadas no calendário oficial.

Tais festas representam uma tradição dos católicos e, embora merecendo nosso respeito, não fazem o menor sentido para a Doutrina Espírita. Portanto, não se justifica nas escolinhas de evangelização a comemoração de datas como a Páscoa, nos moldes do convencionalismo cristão.

É certo, porém, que as crianças trazem informações veiculadas pelos meios de comunicação, pela família, pela escola e que não devemos agredi-las com doutrinações radicais, negando tudo o que conhecem e vivenciam no mundo. 

Mas podemos aproveitar esses saberes, para construir o novo ou resgatar, adequadamente, o ponto de vista histórico e cultural.

No caso da Páscoa, é preciso situá-la entre as  festas ligadas a rituais de fertilidade e seus símbolos, dissociando-a da figura de Jesus, com o cuidado de não repetir a crença de que Ele a instituiu ou de que lhe deu outro sentido, assumindo a posição do cordeiro sacrificado nessa época pelos judeus, para justificar a ressurreição e dar ao corpo do Deus a função de alimento.

O mito do deus morto e do deus ressurrecto é comum a muitas culturas da antiguidade. Quando Jesus encarnou entre nós, essa crença já era conhecida e os judeus, de sua parte, haviam conferido a ela características próprias, associando-a a episódio que remonta ao tempo de  sua submissão ao Egito.

Jesus insere-se naquele contexto, é verdade, e participa dos eventos da época, mas frisa: “Meu reino não é deste mundo”. E mais: “Não quero sacrifício, mas misericórdia.”

Recuperemos a formação da palavra sacrifício: sacro + ofício. Na realidade, o Mestre da Galiléia rompe o ciclo de repetição dos velhos rituais e propõe o mandamento do amor. Misericórdia é expressão do amor. 

Não cobrava Jesus oferendas nos templos, nem rituais mágicos, como aquele que se realizava na páscoa. Não pretendia que se lhe oferecessem ofícios sagrados, mas sim que praticássemos a caridade.

A Terceira Revelação nos convida, através do Espírito de Verdade: “Amai-vos e instruí-vos”. Portanto, o conhecimento que nos traz a própria Doutrina assinala um compromisso com o estudo, ensejando a oportunidade de superar uma mentalidade mágica para alcançar o direcionamento da fé, pela razão. Assim, a evangelização espírita não precisa comemorar as festas da tradição cristã, mas deve constituir a festa de todo dia, porque oferece roteiro seguro para a vida e suas surpresas.

Este terceiro milênio do calendário ocidental está marcado, ao que parece, por descobertas científicas arrojadas e por inquietantes constatações da História, provocando a derrubada de velhas crenças.

 Se, inadvertidamente, repetimos tais crenças na Casa Espírita, estaremos entravando o progresso e perdendo a chance de esclarecimento que o próprio Espiritismo nos oferece.

A criança e o jovem precisam desenvolver uma fé robusta e vigorosa que resista não só aos ventos das novidades – com as quais são alvejados pela escola, pela mídia, pela comunicação virtual – mas também aos embates da vida. Educar-se pelo Evangelho à luz do Espiritismo é abrir uma janela para o futuro, é atravessar a linha do horizonte da acomodação, é libertar-se do velho círculo das ilusões.


Respeitar sim, repetir não. Essa deveria ser a postura dos evangelizadores na casa espírita, diante dos atavismos da tradição cristã.

RITA CÔRE