ESPÍRITO NÃO TEM COR
[...] o corpo
sim... Assim como a máxima "espírito não tem sexo" oculta
várias discussões sobre sexualidade e gênero, e a sentença "espírito
não tem idade" desconsidera questões sociais da juventude e da
infância, a afirmativa título desse artigo acaba por servir ao mesmo propósito.
Abstrair a questão do espírito, como uma coisa neutra, amorfa,
descontextualizada, quase um anjo etéreo, é perigoso. Lembremos que uma das
grandes inovações da obra Nosso Lar, de Francisco Cândido Xavier,
foi apresentar a vida espiritual em um plano concreto, real.
O espírito e a
matéria não são coisas isoladas, pois na vida encarnada o espírito se relaciona
diretamente com o mundo material, não em uma oposição, mas em uma relação
complexa e orgânica.
Esse introito
é para mostrar que a questão do racismo, atualmente em ampla discussão, também
merece uma discussão no campo do Espiritismo.
Em especial, o assunto vem à
baila por força da decisão exarada recentemente por um Juiz Federal diante de
uma ação popular, denegando o pedido de retirada de circulação do livro “Obras
Póstumas”, de Allan Kardec, sob o argumento de nele existirem trechos que
atentam contra a igualdade entre os povos e raças, em conflito com normas
recentes e internacionalmente aceitas, atinentes ao assunto.
O racismo, o
preconceito e as guerras por razões étnicas são construções sociais, de
processos históricos longos e dolorosos.
O nosso país vivenciou séculos de
escravidão, em um processo de libertação dos escravos que não foi acompanhado
de uma integração dessa massa de indivíduos à sociedade, relegando a eles a
pobreza e a discriminação pelas suas práticas culturais, tendo sido perseguidas
pela polícia a capoeira e as religiões de matrizes africanas, assim como foi o
Espiritismo perseguido pelo governo no início do século XX.
Destarte, é
impossível negar essa realidade. A cor da pele representou e representa forma
de dominação e de superioridade entre pessoas, em um processo construído, assim
como foram as construções religiosas que movimentaram e movimentam guerras. E
essa discriminação anda por aí, em nossos corações e falas.
Sobre o
assunto da decisão do juiz denegando o recolhimento de “Obras Póstumas”, vejo
que a decisão do Juiz Federal foi sábia, bastando para isso ler a sua
fundamentação. Essa questão, infelizmente, não é tão simples.
O racismo está
presente sim em várias obras literárias, por ser uma situação que foi aceita e
estimulada pelo senso comum, inclusive em nosso país, desde longa data.
Não é a
primeira vez que uma obra clássica é arrolada nessa situação, como na famosa
mudança de nome do romance de Agatha Cristie, “O caso dos dez negrinhos”, por
solicitação dos herdeiros da referida escritora; e mesmo a recente polêmica
sobre a obra “As caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato.
Nesse sentido, Nota
de 1º de junho de 2011 do Conselho Nacional de Educação (CNE/MEC) apresenta
lúcido e interessante posicionamento, do qual transcrevo trechos a seguir:
“Uma sociedade
democrática deve proteger o direito de liberdade de expressão e, nesse sentido,
não cabe veto à circulação de nenhuma obra literária e artística. Porém, essa
mesma sociedade deve garantir o direito à não discriminação, nos termos
constitucionais e legais, e de acordo com os tratados internacionais
ratificados pelo Brasil.
Reconhecendo a qualidade ficcional da obra de Monteiro
Lobato, em especial, no livro Caçadas de Pedrinho e em outros similares, bem
como o seu valor literário, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa
própria época e responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e
orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que
vivemos.
Nesse sentido, a literatura, em sintonia com o mundo, não está fora
dos conflitos, das hierarquias de poder e das tensões sociais e raciais nas
quais o trato à diversidade se realiza.”
O
posicionamento em relação à obra lobatiana se encaixa como uma luva em relação
à questão apontada na obra kardequiana. Obviamente, essas assertivas contidas
em “Obras Póstumas” não desmerecem a figura de Allan Kardec, que pregou em seus
textos a igualdade.
Mas não podemos esquecer que Kardec era um ser humano, um
homem do seu tempo, imerso em um contexto social. Sair disso é procurar santos
encarnados.
Se julgássemos
as obras básicas livros sagrados e imutáveis, escritas por seres atemporais e
perfeitos, seríamos católicos e não espíritas. Kardec vivia em uma sociedade
com valores e com uma visão de mundo próprios e isso pode vir a se expressar
nos seus comentários, por motivos óbvios.
Mas as análises da obra kardequiana
não devem desconsiderar uma visão global. Podemos citar, por exemplo, a
afirmativa na “Revista Espírita", em outubro de 1861, que se contrapõe
totalmente a ideias racistas:
“O
Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação,
constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente
todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens
corpóreas e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os
estúpidos preconceitos de cor.”
Considerando-se
ainda trechos das obras básicas, outros reforçam o combate ao racismo, como em
:
“Com a
reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito
pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou
subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher.
De todos os argumentos
invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da
mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da
reencarnação.
Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio
da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos
direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.” (A Gênese.)
Ou ainda em “O
Evangelho segundo o Espiritismo”, no texto "O Homem de Bem", quando
diz: "O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos,
sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos
seus".
Assim, ater-se
a um trecho isoladamente, na discussão se o pensamento de Kardec no século XIX
tinha traços de racismo é inócua, principalmente por não ser esse para nós um
profeta infalível, considerando ainda que o Espiritismo superou esse modelo
beatificador. Kardec rompeu com vários modelos daquela época, ainda que a
polêmica citação faça jus a toda essa discussão, merecendo, em minha humilde
opinião, uma nota explicativa, no entendimento consoante com a posição
apresentada pelo Conselho Nacional de Educação. Para melhor exemplificar, segue
um excerto do polêmico trecho:
“[...] Ela nos
foi sugerida, assim como a sua solução, pela passagem seguinte de um livro
muito interessante e muito instrutivo, intitulado: As revoluções
inevitáveis no globo e na Humanidade, por Charles Richard.
[...] Passando
à beleza das formas, assim se exprime, às páginas 44 e seguintes:
Somente, será
bom não esquecer, nessa comparação, que aqui se trata de classes privilegiadas,
sempre mais belas do que as outras, e que, consequentemente, os tipos modernos
a se opor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões, e não na espelunca.
Porque a pobreza, ai!, em todos os tempos, e sob todos os aspectos, jamais foi
bela, e é precisamente assim para nos fazer vergonha e nos forçar a dela nos
libertar um dia.
[...] O negro
pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas não é belo no
sentido absoluto, porque os seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam
a materialidade dos instintos; podem bem exprimir as paixões violentas, mas não
saberiam se prestar às nuanças delicadas dos sentimentos e às modulações de um
espírito fino.
[...] Tendo
este artigo sido lido na Sociedade de Paris, foi objeto de um grande número de
comunicações, apresentando todas as mesmas conclusões.”
O texto de
“Obras Póstumas” deixa claro que Kardec cita um artigo famoso na época e sua
correspondente teoria (da beleza), comentando inclusive manifestações de
espíritos sobre a questão.
Por não se tratar de um ponto basilar da doutrina,
por não ser a obra citada um “Livro Sagrado” interpretado ao pé da letra pelos
espíritas e por ter sido uma citação de forma incidental, podemos concluir –
assim como fez o Juiz – que realmente a infeliz sentença não espelha o
pensamento kardequiano ou espírita, como corroborado em outras falas de sua
obra. Mas isso não o exime de ser um trecho infeliz, ainda mais se interpretado
em um contexto isolado.
A questão é
que como toda religião tem um tomo sagrado, contendo a palavra de Deus, as
pessoas, às vezes, atribuem à obra kardequiana esse sentido literal, o que
realmente traria uma aspecto negativo a essa sentença, assim como a Bíblia,
mormente o “Velho Testamento”, tem várias passagens sexistas, de discriminação
da mulher.
Nunca vi uma reflexão religiosa sobre essas visões nos ditos textos
sagrados, mas estão ali preconceitos de hoje nos hábitos do povo hebreu de
outrora, que pedem o espírito que vivifica e não a letra que mata.
O que não
pode, a meu ver, é que nós espíritas, por qualquer motivo, ignoremos que
essa discriminação é um fato vivo, social e construído, ocultando-se na
neutralidade de um Espírito sem cor. Temos sim responsabilidade com o combate a
essa prática antifraterna, que não coaduna com nossos ideais cristãos.
A questão do
racismo deve ser pauta de nossos estudos, das discussões da juventude e deve
ser entendida como uma expressão do orgulho do ser humano. O Espiritismo deve
apregoar a compreensão entre as manifestações culturais e religiosas, dentro da
visão de que não serão essas questões que nos serão "cobradas" no
retorno à espiritualidade.
O respeito é
uma grande arma contra o racismo e devemos exercitá-lo, principalmente em
relação aos irmãos de religiões de matriz africana, que, apesar das nítidas
diferenças históricas e doutrinárias, têm seus cultos e liturgias que merecem o
mesmo respeito e consideração que devemos às tradicionais missas e aos cultos
evangélicos.
Confesso que o
momento atual é de exaltação e que algumas manifestações soam agressivas quanto
à questão do racismo. Mas são formas de trazer à baila a questão e provocar a
reflexão coletiva... Essa exaltação se dá, pois a questão do racismo envolve um
processo de segregação e de dor arrastado por gerações. Mas isso não nos exime
da questão do preconceito, lembrando que a luta contra o racismo é a luta
contra as diferenças e não a construção de diferenças – de ambos os lados.
Por fim, longe
de esgotar o assunto, que visivelmente carece de produção literária na seara
espírita, fica a questão de revisarmos a nossa vivência, o nosso discurso e
acharmos ali o racismo escondido.
Fundamental também olhar o passado, verificar
que essas chagas não se fecharam todas e que as novas gerações, em um novo
contexto, devem interpretar os clássicos – que recebem esse nome pelo seu valor
– à luz das novas conceituações e das descobertas científicas, entendendo cada
fala no seu tempo, mas sabendo que novos tempos demandam novas falas.
A ação
popular não pode ser fonte de ódio para o movimento espírita e sim de reflexão
sobre essa importante questão, que deve ser enfrentada dentro de nós.
Esconder-se dela, jamais!...
MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA